Astronomia, Fisiologia, Psicologia

Uma evidência histórica bastante clara deste processo de relativização dos sentidos ou de produção da visão subjetiva são os erros de observação astronômica constatados em Greenwich no final do século XVIII. A repetição destes “equívocos” humanos em diversos outros observatórios da Europa serviu-se à perspicácia do astrônomo Friedrich Bessel, que desenvolveu entre 1821 e 1834 uma medida para o que ele chamou de equação pessoal.

Na época de  Bessel já era consenso que a Terra é um lugar difícil a partir do qual se pode  mapear o céu. Além de estar imersa em uma atmosfera densa que distorce posições das estrelas, a terra era concebida por ser uma plataforma móvel, cujo movimento (uma revolução anual em torno do sol) é extremamente oscilante. Portanto, a tarefa de produzir informações astronômicas precisas era extremamente difícil. Além de ter os melhores instrumentos disponíveis e garantir que os erros intrínsecos tinham sido eliminados ou reduzidos na medida do possível, era necessário que os astrônomos  convertessem as suas leituras em dados utilizáveis e compartilháveis​​. Antes de Bessel, qualquer astrónomo fazia essas conversões e ajustes a sua própria maneira. Bessel não só reavaliou todas as correcções em questão, mas estabeleceu uma sistemática de aplicação lógica, que tem sido seguida universalmente desde então. Sem deixar nada ao acaso, ele ainda mostrou que diferentes observadores realmente veêm um determinado evento ocorrer em momentos diferentes e introduziu a “equação pessoal ” para corrigir isso, muito antes da disciplina da psicologia surgir e tomou interesse na questão das diferenças individuais.

A equação pessoal resolveria o problema dàs diferenças individuais na extração de medidas em situações de observação de um fenômeno, ou melhor, o tempo de reação característico de cada sujeito diante de um estímulo percebido; um viés perceptivo subjetivo e pessoal. Constatada a partir das sutis discrepâncias no registro dos valores entre os sujeitos que realizavam a observação simultânea do tempo que corpos celestes levavam para cruzar o espaço das lentes dos telescópios, a equação pessoal serviu como uma direção metodológica na tentativa dos astrônomos de calcular e eliminar os erros humanos em suas observações antes do surgimento do cronógrafo e do cronoscópio(BORING, 1950).

Inventado em 1822, o cronógrafo utilizado na astronomia de posição é um ancestral do quimógrafo. Seu princípio consiste no registro gráfico do tempo a partir de um ponteiro posicionado sobre uma superfície ligado a um outro relógio que, com estímulo eletromagnético faz o ponteiro desenhar um traço numa linha a cada segundo. No momento do trânsito do corpo celeste, o observador pressiona um botão que aciona um outro ponteiro traçando uma linha paralela à outra na superfície. Pela comparação das duas linhas o astrônomo pode calcular o trânsito do corpo e mensurar as posições do objeto observado numa escala de frações de segundo.

O método cronográfico em astronomia foi adotado em Greenwich em 1854 e reduziria consideravelmente a parcela humana na observação astronômica (BORING, 1950). O tempo absoluto de Newton e seu universo-relógio aos poucos dava lugar a dimensão das pequenas frações de tempo e a crescente popularização do relógio dava lugar à novas medidas e também uma nova relação com estas pequenas frações temporais.

Os próprios astrônomos viam na equação pessoal uma questão de ordem fisiológica (BORING, 1950), que tão logo seria apropriada pela então recentemente delineada psicologia fisiológica. Os incidentes que geraram a equação pessoal serviram de inspiração para que o fisiologista Wilhelm Maximilian Wundt iniciasse em 1861 seus experimentos de complicação, expostos no segundo tomo do livro Psicologia Fisiológica publicado em 1874. Estes consistiam inicialmente em medir e comparar o tempo decorrido no deslocamento da atenção diante de um estímulo visual e diante de um estímulo auditivo, ou seja, em medir o tempo de reação dos sujeitos em situações de mudanças no foco da atenção (BORING, 1950). Tais experimentos viriam a demarcar a ruptura de Wundt com o materialismo psicofísico, levando-o a aproximar-se de uma primeira formulação dos problemas psicológicos sob uma abordagem científica genuinamente experimental.

As principais influências daquele que é tido como o principal fundador da psicologia moderna remontam, por um lado, à fisiologia dos sentidos de Joahnnes Muller, que refletia e pesquisava sobre os processos envolvidos na sensação e na percepção à luz da crítica da razão realizada por Kant; e por outro, às teorias do materialismo psicofísico, representadas pela  ótica e a acústica fisiológica do médico e físico Hermann von Helmholtz, além dos Elementos de Psicofísica de Fechner. Assim como estes dois últimos, Wundt também estaria interessado na aplicação de métodos matemáticos ao estudo e à compreensão dos fenômenos físicos. Através da pesquisa de Muller, o universo kantiano se faria presente em Wundt, levando-o a realizar uma crítica metodológica do próprio materialismo psicofísico do qual partia. Com isso, Wundt ampliaria o espectro da psicofísica ao realizar também a sua crítica metodológica e filosófica, mas sem dúvida não deixava de estar comprometido com este, então novo, ramo da fisiologia.

Wundt teve contato com Helmholtz e Muller logo depois que se formou em 1855 na cidade de Heidelberg, quando havia defendido sua tese sobre a sensibilidade tátil, na qual utilizou os métodos de medida utilizados por Ernst Weber, que consistiam na mensuração do limiar de discriminação entre dois pontos estimulados sensorialmente. Em 1858, ele organiza Contribuições para a teoria da percepção sensorial, uma compilação de trabalhos publicados separadamente que reunia textos sobre os métodos psicofísicos e as teorias da percepção. Wundt publica o livro Lições de psicologia humana e animal em 1863, antecipando muitas das idéias que seriam desenvolvidas futuramente no espectro da psicologia comparativa. Os Princípios de Psicologia Fisiológica seriam publicados em dois volumes entre 1873 e 1874, disso seguiu sua admissão no Instituto de Fisiologia de Leipzig em 1875, onde criaria o primeiro laboratório de psicologia experimental em 1879.

Nesse período, a psicologia fisiológica de Wundt já havia coletado e colocado de forma sistemática os resultados de questões até então isoladas e dispersas, circunscrevendo-as, como escreve o psicólogo associacionista inglês, aluno de Helmholtz, James Sully no ano de 1905, em assuntos como:

as funções dos diversos centros nervosos, as relações de quatidade e qualidade das sensações a estímulos físicos, a distinção fisiológica entre sensação e idéia, e as causas de confusão entre as duas em diversas condições anormais do organismo (SULLY, 1905; p.21).

Um aluno de Wundt que ajudou a popularizar suas idéias na América do Norte ainda no século XIX, James McKeen Cattel, resumiu e organizou os focos de pesquisa do Laboratório de Psicologia Experimental em Leipzig em 4 eixos, conforme escreveu em 1888: (1) Análise e mensuração da sensação ; (2) A duração dos processos mentais; (3) A percepção do tempo ; (4) Atenção, memória e as associações entre as idéias (CATTEL, 1888; p.40).

Todas estas questões e eixos de pesquisa compartilhavam um mesmo objetivo: a determinação e a delimitação precisas do funcionamento fisiológico e suas condições numa certa classe de fenômenos, os chamados fenômenos mentais. O pressuposto comum na abordagem de todos estes problemas, e que autorizava a psicologia fisiológica a assumir-se como um campo de pesquisa científica mais ou menos consolidado, era o de que todo e qualquer elemento da consciência e os processos mentais que eles constituem, seja a mais elementar, simples ou efêmera sensação que advém diretamente de um estímulo externo; sejam as mais complexas e elaboradas operações do pensamento abstrato, toda vida mental de um ser humano está ancorada nos processos físicos do organismo numa relação de equivalência. Ou seja, a consciência e seus elementos são colocados paralelos à atividade nervosa (SULLY, 1905), ainda que não sejam idênticos a ela. A psicologia fisiológica de Wundt aceitava, portanto, o paralelismo psicofísico.

Esse post foi publicado em Sem categoria. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário