Se, no final do século XIX, a fisiologia se outorgava à posição de ciência fundamental do campo da medicina, pautando-se no método experimental como base para as ciências da vida; sem dúvida esta posição não decorria de um processo simples e natural do desenvolvimento da ciência. A produção da experiência moderna do século XIX na Europa, abrangendo as transformações culturais e tecnológicas mais amplas do mundo ocidental, estava relacionada ao complexo processo histórico marcado por inovações industriais, técnicas e científicas, que, na segunda metade daquele século, incidia sobre a instrumentalização das medidas experimentais, potencializando o aprimoramento dos métodos quantitativos em diversas ciências. A partir dos incrementos tecno-metodológicos introduzidos pelos fisiologistas no século XIX, certos fenômenos começam a ser estudados sob outros olhares e lentes. É o nascimento da fisiologia moderna…
A fisiologia moderna caracteriza-se por ser a ciência que estuda as funções bioquímicas, físicas e mecânicas dos organismos vivos. Borrel (1987) remonta suas origens à descoberta do sistema circulatório no século XVII, mas, sobretudo, à teoria celular desenvolvida por Matthias Schleidan e Theodor Schwann em 1838 e à formulação das noções de meio interno e meio externo do organismo, distinção descrita por Claude Bernard em 1865 no livro Introdução ao Estudo da Medicina Experimental.
O desenvolvimento de tecnologias e instrumentos de mensuração dos fenômenos fisiológicos modificou e moldou a forma de apresentação dos dados científicos. Estes instrumentos introduzidos pelos fisiologistas desde a década de 40 do século XIX são indícios de uma transformação cultural mais ampla, que ultrapassa os domínios daquela disciplina (BORREL, 1987) e apontam, na realidade, para uma nova posição epistemológica, um novo status da percepção, ou, até mesmo, um novo modelo de observador que operava no discurso científico e na sociedade em modernização.
Em 1847, o fisiologista Karl Ludwig (1816-1895) desenvolve o quimógrafo ou cimógrafo (do grego Kyma = onda). Trata-se de aparelho de laboratorial, que realiza o registro gráfico de variações no movimento e de ondulações, utilizado em fisiologia, sobretudo para medir a pressão arterial. O surgimento do quimógrafo possibilitou a mensuração e o estabelecimento de correlação da pressão sanguínea, do ritmo cardíaco das respostas nervosas e musculares, modificando radicalmente a forma de compreender o corpo humano. A partir do registro gráfico de determinadas respostas do corpo, o quimógrafo permitia que uma linguagem não verbal fosse atribuída aos processos fisiológicos, tendo em vista que a obtenção de uma imagem precisa destas respostas tornava-as facilmente quantificáveis.
Os instrumentos de reprodução e tradução de eventos mecânicos dos corpos desenvolvidos e utilizados pelos fisiologistas possibilitaram que processos outrora ocultos se tornassem visíveis e que números pudessem lhes ser atribuídos (BORREL, 1987), o que materializou análises de natureza quantitativa e consolidou a fisiologia enquanto ciência objetiva, fundamento da medicina. A fisiologia deixava de ser descritiva e passa a se basear em métodos quantitativos.
Os mecanismos de reprodução elétrica e eletrônica da virada do século XX e os instrumentos eletrônicos de tradução de eventos mecânicos não são senão evoluções de mecanismos ancestrais como o quimógrafo. Estes desempenhariam uma função de natureza bastante semelhante à de seu antecessor: a de eliminar a subjetividade da experimentação fisiológica e possibilitar a quantificação e conseqüentemente uma medida para os fenômenos observados (BORREL, 1987). As balanças modernas, o cronógrafo e o cronoscópio, os equipamentos de vivesecção, os aparatos de respiração artificial, o galvanômetro, o pletismógrafo, o quimógrafo, a fotografia, e, na virada do século, o cinematógrafo, amplamente utilizado desde seus primórdios na pesquisa fisiológica; todos estes contribuíram para consolidação da fisiologia enquanto uma ciência natural fundamentada sobre a metodologia experimental.
O salto metodológico proporcionado por toda esta maquinaria, entretanto, não fora somente o de consolidar a pesquisa objetiva na fisiologia, mas o de atribuir a ela, uma nova realidade e uma nova terminologia para descrevê-la e explicá-la, uma vez que estes aparatos técnicos possibilitavam o estudo dos corpos vivos, em funcionamento. As técnicas de vivesecção expurgaram os cadáveres do centro da pesquisa fisiológica, substituindo-os pelos próprios organismos que respondiam aos estímulos expostos nas situações experimentais. Isso demandou a reformulação de toda uma terminologia, que deveria estar adequada à nova ciência. A pura descrição perde importância e surge a idéia de função e de processo para explicar o mundo orgânico. Os corpos vivos passaram a ser definidos a partir da conjunção de sistemas fisiológicos, onde a própria dimensão do movimento se incorporava no estudo dos organismos, que outrora eram descritos estaticamente.