A fisiologia e suas “ferramentas” no século XIX (o quimógrafo e o prelúdios da psicologia científica)

Se, no final do século XIX, a fisiologia se outorgava à posição de ciência fundamental do campo da medicina, pautando-se no método experimental como base para as ciências da vida; sem dúvida esta posição não decorria de um processo simples e natural do desenvolvimento da ciência.  A produção da experiência moderna do século XIX na Europa, abrangendo as transformações culturais e tecnológicas mais amplas do mundo ocidental, estava relacionada ao complexo processo histórico marcado por inovações industriais, técnicas e científicas, que, na segunda metade daquele século, incidia sobre a instrumentalização das medidas experimentais, potencializando o aprimoramento dos métodos quantitativos em diversas ciências. A partir dos incrementos tecno-metodológicos introduzidos pelos fisiologistas no século XIX, certos fenômenos começam a ser estudados sob outros olhares e lentes. É o nascimento da fisiologia moderna…

Capa do livro de William Harvey, Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus de 1628, onde descreve o sistema circulatórioIlustração do livro de Harvey

Ilustraçao do livro de Harvey

Microscópio tal como ilustrado no livro de Hook, Micrographia de 1655, no qualq ele utiliza o termo célula, para descrever e ilustrar a menor unidade do ser vivo

Capa da primeira edição alemã do livro de Schwann "Investigações Microscópicas sobre a Estrutura e Crescimento dos Animais e das Plantas", de 1839, onde afirma que todos os seres vivos são feitos de células

Ilustraçao do livro de Schwann, defendendo a estrutura celular dos seres vivos.

A fisiologia moderna caracteriza-se por ser a ciência que estuda as funções bioquímicas, físicas e mecânicas dos organismos vivos. Borrel (1987) remonta suas origens à descoberta do sistema circulatório no século XVII, mas, sobretudo, à teoria celular desenvolvida por Matthias Schleidan e Theodor Schwann em 1838 e à formulação das noções de meio interno e meio externo do organismo, distinção descrita por Claude Bernard em 1865 no livro Introdução ao Estudo da Medicina Experimental.

Capa do livro do francês Claude Bernard, onde ele formula distinção entre meio interno e meio externo do organismo vivo. Tal distinção antecede a idéia de homeostase e pode ser enocntrada no livro "Introduction à l'étude de la médecine expérimentale" de 1865

O desenvolvimento de tecnologias e instrumentos de mensuração dos fenômenos fisiológicos modificou e moldou a forma de apresentação dos dados científicos. Estes instrumentos introduzidos pelos fisiologistas desde a década de 40 do século XIX são indícios de uma transformação cultural mais ampla, que ultrapassa os domínios daquela disciplina (BORREL, 1987) e apontam, na realidade, para uma nova posição epistemológica, um novo status da percepção, ou, até mesmo, um novo modelo de observador que operava no discurso científico e na sociedade em modernização.

Em 1847, o fisiologista Karl Ludwig (1816-1895) desenvolve o quimógrafo ou cimógrafo (do grego Kyma = onda). Trata-se de aparelho de laboratorial, que realiza o registro gráfico de variações no movimento e de ondulações, utilizado em fisiologia, sobretudo para medir a pressão arterial. O surgimento do quimógrafo possibilitou a mensuração e o estabelecimento de correlação da pressão sanguínea, do ritmo cardíaco das respostas nervosas e musculares, modificando radicalmente a forma de compreender o corpo humano. A partir do registro gráfico de determinadas respostas do corpo, o quimógrafo permitia que uma linguagem não verbal fosse atribuída aos processos fisiológicos, tendo em vista que a obtenção de uma imagem precisa destas respostas tornava-as facilmente quantificáveis.

Quimógrafo de Ludwig

Os instrumentos de reprodução e tradução de eventos mecânicos dos corpos desenvolvidos e utilizados pelos fisiologistas possibilitaram que processos outrora ocultos se tornassem visíveis e que números pudessem lhes ser atribuídos (BORREL, 1987), o que materializou análises de natureza quantitativa e consolidou a fisiologia enquanto ciência objetiva, fundamento da medicina. A fisiologia deixava de ser descritiva e passa a se basear em métodos quantitativos.

Os mecanismos de reprodução elétrica e eletrônica da virada do século XX e os instrumentos eletrônicos de tradução de eventos mecânicos não são senão evoluções de mecanismos ancestrais como o quimógrafo. Estes desempenhariam uma função de natureza bastante semelhante à de seu antecessor: a de eliminar a subjetividade da experimentação fisiológica e possibilitar a quantificação e conseqüentemente uma medida para os fenômenos observados (BORREL, 1987).  As balanças modernas, o cronógrafo e o cronoscópio, os equipamentos de vivesecção, os aparatos de respiração artificial, o galvanômetro, o pletismógrafo, o quimógrafo, a fotografia, e, na virada do século, o cinematógrafo, amplamente utilizado desde seus primórdios na pesquisa fisiológica; todos estes contribuíram para consolidação da fisiologia enquanto uma ciência natural fundamentada sobre a metodologia experimental.

O salto metodológico proporcionado por toda esta maquinaria, entretanto, não fora somente o de consolidar a pesquisa objetiva na fisiologia, mas o de atribuir a ela, uma nova realidade e uma nova terminologia para descrevê-la e explicá-la, uma vez que estes aparatos técnicos possibilitavam o estudo dos corpos vivos, em funcionamento. As técnicas de vivesecção expurgaram os cadáveres do centro da pesquisa fisiológica, substituindo-os pelos próprios organismos que respondiam aos estímulos expostos nas situações experimentais. Isso demandou a reformulação de toda uma terminologia, que deveria estar adequada à nova ciência. A pura descrição perde importância e surge a idéia de função e de processo para explicar o mundo orgânico. Os corpos vivos passaram a ser definidos a partir da conjunção de sistemas fisiológicos, onde a própria dimensão do movimento se incorporava no estudo dos organismos, que outrora eram descritos estaticamente.

Quimógrafo utilizado por Wundt em seus experimentos de Psicologia Fisisológica

Quimógrafo utilizado para medir a "pressão" da voz

Registros de quimógrafos comparados com escalas musicais, sugerindo a idéia de ritmo para descrever os processos fisiológicos. Cadernos de Anatomia de Leipzig.

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